O artigo desta semana abordará
algumas questões de colocação pronominal, a pedido de meu amigo Décio,
violeiro, professor e escritor (conheci suas facetas nessa ordem e cada
uma foi uma agradável surpresa!)
Como
apreciadores da música caipira de raiz, ele e eu estamos habituados a
ouvir a língua portuguesa falada na sua variante mais distante da norma
culta. Vejamos um trecho de uma moda muito conhecida, gravada pela
saudosa Inezita Barroso:
Com a marvada pinga é que eu me atrapaio
Eu entro na venda e já dou me taio
Pego no copo e dali num saio
Ali memo eu bebo, ali memo eu caio
Só pra carregá é que eu do trabaio, oi lai
(…)
O marido me disse, ele me falô
Largue de bebê, peço por favô
Prosa de home, nunca dei valô
Bebo com sór quente pra esfriá o calô
E bebo de noite pra fazê suador, oi lai (…)
Nesse trecho aparecem alguns pronomes que funcionam como complementos dos verbos.
A norma culta define, para os pronomes oblíquos átonos (me, te, se, o(s), a(s), lhe(s), nos, vos), três posições possíveis em relação ao verbo: próclise (antes do verbo), mesóclise (“dentro” do verbo) e ênclise
(após o verbo) e, para entender essa relação, lembremos que a frase, em
português, pode ser construída na ordem direta [sujeito + verbo+
complemento (OD/OI)+ adjunto adverbial] ou na ordem indireta, em que
alteramos a posição de alguns desses elementos.
Como
a intenção aqui é apenas dar as dicas (as regras um bom livro de
Gramática trará em detalhes), vamos objetivamente ao que se pode e o que
não se pode fazer nos textos:
A ênclise deve ser observada sempre no início das frases, ou seja, não se inicia frase com pronome oblíquo.
Aqui temos uma das grandes diferenças de pronúncia entre a língua
falada por aqui e a língua falada na terra de Camões. Nós, brasileiros,
pronunciamos os pronomes átonos “com força”, o que nos permite começar
as frases com eles (Me empreste seu caderno.). Já os
lusitanos falam quase sem pronunciar a vogal, o que, aliás, produz o
sotaque característico da terrinha, de modo que eles não conseguem
começar as frases como nós… sairia algo como “M’empreste seu caderno” –
muito difícil!
Como o idioma veio de lá, as regras acompanharam… Dessa diferença tão marcante entre a regra e o uso, o modernista Oswald de Andrade tirou assunto para poesia:
PronominaisDê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.Oswald de Andrade ANDRADE, O. Obras completas, Volumes 6-7. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
A mesóclise é empregada em textos muito formais, mas muito mesmo! Ocorre apenas no futuro do presente de indicativo e no futuro do pretérito do indicativo. Por que só com eles? Bem, lembremos que esses tempos são derivados. Na verdade, são a junção de um verbo no infinitivo + o verbo Haver
e para fazer a colocação pronominal, o pronome vai entre os dois verbos
(lembra que ‘meso’ significa ‘entre’, como em Mesopotâmia – entre os
rios).
Daí, em
“Entregarei a você os livros”
substituindo ‘a você’ por ‘lhe’, teremos
Entregar-lhe-ei os livros. (entregar = infinitivo / (h)ei = verbo haver na 1.ªp.sing. e entre os dois, o pronome lhe).
Mas podemos fugir dessa forma um tanto esnobe, colocando um sujeito expresso. Isso nos permite usar a próclise:
Eu lhe entregarei os livros.
E como a mencionei, vamos à próclise!
Existem regras para a colocação do pronome antes do verbo. Na frase, deve haver a presença dos chamados fatores de próclise
– palavras que exercem atração, ‘puxam’ o pronome para antes do verbo
(que podem ser, entre outras, uma palavra negativa, um advérbio, um
pronome relativo…). Veja as frases abaixo:
Ninguém me deu o recado.Amanhã a encontrarei na aula.
Eu sei que me entenderam.
No
caso do português do Brasil, é considerado mais grave não levar em
consideração um fator de próclise do que empregar a próclise mesmo que
não haja a tal partícula atrativa.
Voltando à Moda da Pinga, é o
que acontece com os pronomes destacados: não há nenhum fator de
próclise, mas a ‘musicalidade’ do português do Brasil nos leva a colocar
os pronomes antes do verbo. Tudo o que mencionei vale também para as
locuções verbais (verbo auxiliar + verbo no infinitivo ou no gerúndio) e
para os tempos compostos (verbo auxiliar + verbo no particípio). Nessas
combinações, evite colocar o pronome entre os verbos. Ah, e particípio
não aceita ênclise!
Assim, na prática, as regras se resumem a:
- Não inicie frase com pronome oblíquo; e
- Coloque o pronome antes do verbo (ou da locução)
É isso!
Até a próxima!
Nenhum comentário:
Postar um comentário